MINHAS PRÁTICAS DE INCLUSÃO

Desde que tomei conhecimento de que na minha cidade, numa escola estadual, havia uma sala de recursos para atendimento aos alunos com deficiência visual, interessei-me pelo assunto. Depois fiquei sabendo também que na rede da 39ª Coordenadoria haviam sido cadastradas em torno de sessenta pessoas com DV. Nestes nove anos de trabalho junto aos alunos na sala de recursos, acolhi a idéia da inclusão com critérios claramente definidos, discutida em vários níveis, na escola e na sociedade, buscando contribuir para a autonomia dos alunos, sempre tão carentes de ajuda na superação de suas necessidades primordiais. O que considero de suma importância é a afinidade que podemos estabelecer com o aluno deficiente, pois é através desse vínculo de confiança que podemos aguçar seu interesse em promover cada vez mais sua cidadania, na busca de seus direitos primeiros, como documentação, aposentadorias, entre outros. Faço-os saber dos seus direitos, do que a legislação prevê para eles, pois do que eles necessitam é exatamente alguém que os oriente e que ao mesmo tempo os deixem caminhar. Depois, o incentivo à sua participação em cursos, fóruns, encontros, debates, associações, que só vem acrescentar um sabor especial na vida deles, pois sabem que não estão solitários em sua caminhada.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO BRAILLE

Elizabet Dias de Sá[1]

Esta exposição pretende sintetizar minha experiência pessoal no que se refere ao aprendizado do braille e sua aplicabilidade no contexto atual de minha vida. Enfatizo os aspectos objetivos e subjetivos desta experiência e faço breves considerações acerca do sentido lúdico do braille para as crianças.
O sistema braille é universalmente associado à falta da visão e, como símbolo de cegueira, desperta curiosidade, fantasias e sentimentos. Para as pessoas que não conhecem essa modalidade de escrita e leitura, ao primeiro contato, o braille representa apenas pontos bordados no papel, um conjunto de grãos ou de caroços esculpidos em uma superfície lisa, um código indecifrável, uma incógnita, um mistério, uma espécie de hieróglifos... Para as pessoas cegas, representa uma alternativa que amplia as possibilidades de informação, um dispositivo emancipatório e desafiador.
A assimilação do braille em minha experiência pessoal caracterizou-se por um movimento dúbio e hesitante de aproximação e recuo, impregnado de sentido de perda. Nasci com acuidade e campo visual reduzidos e utilizei recursos ópticos que me possibilitavam o reconhecimento de cores, imagens e objetos próximos dos olhos. Tratava-se de um resíduo visual mais ou menos estável durante a infância e a adolescência; este resíduo esvaiu-se progressivamente e de forma irreversível na idade adulta, apesar de minhas tentativas no sentido de preservá-lo. A perspectiva do braille, neste contexto, representou uma ameaça que pesava como chumbo, causava tensões, ansiedades e sentimentos ambivalentes. Era como se fosse um veredicto, um atestado, uma rendição definitiva ao estado de cegueira, aquela cegueira anunciada contra a qual lutei até a inevitável derrota.
Nem todos alcançavam esta dimensão conflituosa do braille em um momento crucial de minha vida. Por isto, era difícil conviver com as pressões e críticas abertas ou veladas dos que mostravam as
vantagens e os ganhos desta aquisição e questionavam meu aparente desinteresse ou a resistência em relação ao aprendizado deste sistema. Entretanto, não convém impor o braille como se fosse um paliativo emergencial ou a mera instrução mecânica de uma técnica redentora que pode ser assimilada automaticamente diante da privação do sentido da visão. Assim, tive que vencer alguns traumas e fantasmas para fazer aflorar o desejo de aprender o braille.
As primeiras tentativas foram desanimadoras, pois a tensão muscular e a fadiga faziam-me desistir temporariamente. O código braille é simples, objetivo, lógico e facilmente compreensível. Difícil é a
morosidade da escrita e a assimilação da leitura tátil que foi árdua, tediosa e lenta; produzia dormência e formigamento nas mãos e nos braços, o que tornava a posição dos pontos sob o tato de difícil discriminação. Ao escrever, apertava o punção como se fosse perfurar uma superfície rochosa. Mesmo assim, insistia quase diariamente, ainda que por pouco tempo, consciente da necessidade e não pelo prazer de aprender. O prazer veio depois, quando consegui decifrar, sem sacrifícios, aquele denso pontilhado aparentemente desprovido de sentido.
Aprendi o braille por meio de um curso à distância, cujo material utilizado consistia em impressos e gravações em fita cassete, enviados por correspondência. Tratava-se de uma seqüência de lições e exercícios organizados e corrigidos por um profissional indicado pela instituição para acompanhar-me neste aprendizado. As questões, comentários, recomendações e outras interações necessárias eram gravadas e intercambiadas alternadamente em um prazo definido de forma flexível e sistemática. Eu me identificava com essa modalidade de aprendizagem por se tratar de uma alternativa condizente com minha disponibilidade, meus objetivos e estilo pessoal. Assim, os primeiros rudimentos do sistema braille foram introduzidos em minha rotina como uma tarefa cumprida em distintos horários e em um tempo que variava segundo meu esforço ou motivação momentâneos.
Ao concluir o curso, alguns meses depois, percebi que seria necessário aprimorar a técnica de leitura para alcançar uma maior agilidade e destreza tátil. Então, tratei de unir o útil ao agradável, ao associar o treino do braille à aquisição de novas habilidades e conhecimentos. Por exemplo, usei o braille para aprender noções de inglês e ainda uso para exercitar o espanhol por meio de publicações editadas por instituições internacionais. Recentemente, entrei em contato com o
esperanto através do braille. Costumo levar uma revista ou um livro de literatura para ler em hotéis, aeroportos, ônibus e aviões durante minhas viagens. Além disso, utilizo o braille rotineiramente, em situações prosaicas, seja para etiquetar CDs, fitas cassetes, pastas, frascos, potes ou para imprimir uma marca nos objetos e utensílios de minha casa. Enfim, a funcionalidade do braille foi inserida em meu quotidiano, podendo ser acionada a qualquer momento em diferentes situações.

AS CRIANÇAS E O BRAILLE
Recebi um convite para participar de uma atividade com duas turmas de crianças de 6 anos em uma escola de educação infantil. A atividade consistia em uma entrevista coletiva comigo e o tema era a minha experiência de vida como pessoa cega. Tratava-se da culminância de um projeto no qual as professoras haviam trabalhado com as crianças informações básicas e elementares sobre a locomoção de pessoas cegas e o sistema braille.
As crianças foram organizadas em uma grande roda comigo ao centro e todas sentadas no chão. Cada uma delas trazia um crachá com seu nome impresso em tinta e em braille. Um grupo de crianças iniciou a entrevista e, a partir de minhas respostas, as outras participavam espontaneamente, contavam casos e faziam comentários. As perguntas eram simples e objetivas. Queriam saber como eu faço para atravessar as ruas, como vejo televisão, como faço para comer, se conheço as cores etc. Uma delas comentou que eu devo ter muita facilidade para andar no escuro. Quiseram testar a bengala, o que provocou um alvoroço na turma. Mostraram-me os pontinhos do braille e sabiam para que servem.
Certa vez, ao retornar de Natal para Belo Horizonte, no avião, eu lia uma revista em braille, o que despertou a curiosidade de duas crianças que viajavam ao meu lado. Era uma garota de doze anos que também lia um livro e seu irmão de 6 anos. Durante uma demorada escala em Recife, elas fizeram perguntas sobre o braille e eu procurei explicar de forma simples e didática com uma breve demonstração. Elas se empolgaram, decidiram escrever seus nomes e, juntas, conseguimos esta proeza. A garota quis ir além e escreveu seu nome em braille na capa do livro que lia. Depois, pediu-me para ditar as letras do alfabeto porque ela queria mostrar ao pai o que aprendeu no avião.
Estas experiências ilustram a dimensão lúdica do sistema braille e a plasticidade da percepção infantil para incorporar e naturalizar a diferença. A projeção do sistema braille e a interação das crianças cegas e não cegas contribuem para a desmistificação da deficiência, a formação de princípios éticos, o exercício de cooperação e solidariedade, entre outros valores que possibilitam a eliminação de preconceitos e atitudes discriminatórias no presente e no futuro.




[1] Palestra proferida no I Simpósio Sobre o Sistema Braille, no dia 14 de setembro de 2001, em Salvador

2 comentários:

  1. Marina,
    Gostei muito desta palestra.
    Você fala com "paixão" e isto é muito bom.

    Abraços

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  2. Oi, Claricia,
    esta palestra é da professora Elizabet Dias de Sá. Eu apenas publiquei justamente por considerar muito importantes os aspectos abordados e que a autora tão bem relatou.
    Um abraço para você...

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